terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Aquela do carnaval com fim e sem finalidade

Muito à contra gosto, José desacordou quando o Sol ainda estava pensando em abrir os olhos diante daquele lugar. Como todo dia, engoliu alguma coisa pra se manter em pé e se arrumou, semi-acordado, pra enfrentar mais um dia de trabalho. Com a quase consciência de quem já faz tudo meio que mecanicamente, ele partiu. Não pra mais um dia, mas pro mesmo dia. O mesmo de ontem, de anteontem e talvez o de amanhã. Talvez.
Pelo menos esse dia tinha um aditivo: Vinha com aquela recompensa que ia embora antes que José pensasse em querer mudar de vida. O salário que, uma vez ou outra, proporcionava uma euforia passageira, das quais ele mal se lembrava. O álcool fazia-lhe o favor de apagar da memória as tolices que dito e a libido que tinha espalhado nas noites em claro. As costas do fim do mês eram, pelo menos pra ele, motivo suficiente para tentar achar solução ou esquecimento nas moléculas de alguma bebida ou na saliva de alguma mulher especialmente barata.
Depois de horas e horas vendo rostos, números, concreto e suor, alguma mixaria lhe foi dada. E assim ele foi direto pra mais uma noite turbulenta, onde procuraria mais uma vez procuraria respostas ou não-memórias em lugares inusitados. Mas logo depois de chacoalhar dentro de um meio de transporte junto com outros Josés, ao ser regurgitado, foi abordado por um José um tanto quanto cansado da rotina mecânica de quem prefere não tomar o que não lhe é de direito. Ficou sem ter como voltar para o seu lar, seu ponto de retorno. Sem ter como pagar contas. Sem pseudo-solução para nada.
Desesperado, foi andando rumo à sua casa, ainda bem longe. As ruas dali, esquecidas pelos que seriam responsáveis por elas, estavam tão vazias e escuras como a carteira de José. Ele aproveitou que não havia nem sinal de outra pessoa por ali e soltou seu desabafo solitário. Ou não.
- Deus, o que foi que eu te fiz de errado? Será que dá pra ficar pior do que isso?
Alguém responde, logo atrás do poste.
- Eu posso providenciar isso, se você quiser.
- Outro assaltante? – disse José - Agora nem se você quisesse eu teria algo pra lhe dar. Outro já me tomou tudo. Vá roubar outro.
- Quem dera fosse que eu quisesse só seu dinheiro. O que eu quero de você é bem mais caro. E ao mesmo tempo, é um presente.
- Aff, mais um bêbado. Quem é você?
- Sou aquele que pra quem você destina seus pedidos mais íntimos, sendo tolos ou não. E pra quem você fez aquelas perguntas de ainda pouco.
- Eu pensava que era só álcool, mas você usou droga da pesada mesmo. Vai pra casa, rapaz. Sua mãe deve estar preocupada.
Deus riu e disse:
- Sinceramente, se eu não fosse Deus, eu seria um perdido qualquer como você, desesperado por estar a essa hora na rua. Nenhuma alma terrena com algum juízo passa por aqui. Eu pareço desesperado?
- É, não. Aliás, parece bem alegre. Parece que ganhou na loteria ou algo assim.
- Digamos que é algo bem melhor. Algo que ninguém pode me tomar, apontando uma faca ou um revolver pra mim.
- E o que é?
- A chance de resgatar um filho querido.
- E quem é esse filho?
- Você, José.
José fez uma careta e virou as costas.
- Tá, fica ai achando que me fez que eu vou pra casa.
Deus continuou parado onde estava, mas falou um pouco mais alto, pois José já ia mais à frente.
- Casa, José? Você chama aquele amontoado de tijolos onde você estica seus ossos, exatamente como um zumbi, de casa?
José voltou e olhou bem pra cara de Deus.
- Foi o que eu consegui, tá? Acha que é fácil ser pobre? E como é que você sabe que eu moro numa casa assim? Além de drogado, é espião também?
- Espiões só observam pessoas importantes, José. Para sociedade de hoje, você só é mais uma peça pra construir o império dos mais fortes. Aliás, você se fez uma peça. Então eu não teria motivo nenhum para saber mais da sua vida que você, a não ser que eu fosse Deus.
- Eu mereço... Tá bom. Vamos imaginar que você é Deus mesmo.
- Se é assim que você quer me chamar...
- Tá, tá. Porque escolheu esse corpo tão sem graça?
Realmente, Deus estava bem maltrapilho. Estava vestido com roupas de segunda mão e com o rosto bem machucado, como se tivesse acabado de voltar do trabalho também.
- Eu não queria chamar atenção. Acha mesmo que se eu viesse como um homem bonito e elegante, eu não ia virar vítima de fofoca pela minha aparência? Não, obrigada. Já falam muito mal de mim sem que eu tenha nenhuma forma uma humana definida.
- E não tem? E essa de agora?
- Isso não sou eu, só é um canal que estou utilizando. Aliás, é um canal que algum representante de mim está usando. Você acha que eu estou muito satisfeito em estar fazendo isso? Eu já chamo tanto a sua atenção, mas não funciona. Vi-me obrigado a fazer isso.
- Chama minha atenção? Como? Eu não vejo nada.
- Você está olhando com os olhos errados, José. Aliás, mesmo que você usasse esses dois que você tem em sua cara, veria que grito com você todos os dias. Desde a hora que você levanta à que você dorme. E em seus sonhos também. Quem você acha que fez isso tudo e deu forças pra vocês todos fazerem o resto, ou melhor, destruírem o resto?
- Tá, tá. Se eu sou tão cego, surdo e doido assim, o que você queria me dizer?
- Que eu quero que você use seu bom senso.
- Tá me chamando de ignorante agora também? Ok, eu sei que não tenho muita educação formal mesmo, mas não sou tão burro assim quanto você pensa.
- Eu não disse que você é burro. Só quero que você analise melhor sua vida, e saiba usufruir melhor das minhas leis.
- De onde eu vim, leis só servem pra prender a gente.
- Se você me ouvisse, veria que não existe prisão pior pra você do que essa vida que você leva.
- E onde estão essas suas leis? Onde foi que você escreveu?
- Na sua consciência. Você a esqueceu e menosprezou. Agora eu quero que a lembre. ¹
- Lembre de onde? Você nunca me ensinou nada.
- Eu não era a mão que segurava a sua quando você estava aprendendo a escrever, mas era a força que segurava as duas. E assim vale tudo que você. Basta que você se lembre.
José desistiu de questionar. Deus suspirou e disse.
- Agora eu preciso ir. Existem outros como você e talvez em situações piores que a sua que precisam ouvir coisas parecidas com as que eu disse agora. Até breve, José.
E Deus saiu caminhando lentamente, ladeira abaixo, já que o tempo é realmente dele. José o observou até sua silhueta sumir. Sem entender muita coisa, continuou seu caminho para casa (agora em dúvida se era realmente sua casa), com a cabeça tentando digerir alguma coisa que foi dita por aquele que se dizia Deus. Ou um instrumento Dele. Ou algo assim.
Quase se espantou, o despertador já havia tocado e já era hora que acordar. Aquele não dia não havia acontecido. Fora tudo um sonho que o fez dar graças a Deus por nada daquilo ter realmente acontecido. Graças àqueles que havia lhe enchido a mente com o que pensar naquela noite. Mas o mesmo dia de verdade, ou aquele que José achava que era de verdade, veio. O mesmo de ontem, o de anteontem e talvez o de amanhã. Talvez. E talvez José tente esquecer ou encontrar seu bom senso novamente mergulhado em algum copo ou dentro dos olhos de alguém tão vazio quanto ele. Vazio de perspectiva, de sonhos. De vida. Não essa, mecânica e dura, mas a que deveríamos ter, e, enfim, teremos.



[¹]: Adaptado do Livro dos Espíritos, questão 621.

P.S.: Às vezes algumas mensagens são dadas às pessoas antes que elas possam entendê-las. Servem exatamente para que ela as interpretem e aprendam bem mais do que ela brutamente quer dizer. Mas de más interpretações e intenções o mundo ou inferno, seja como for que você prefira chamar esse lugar onde nós estamos, está cheio. O que resta é saber se os erros são por ignorância ou o aproveitamento da mesma, só que a alheia. No fim, ou no começo, todo mundo vai ter o que merece.